segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Uma crônica publicada em setembro - Jornal Serras da Mantiqueira

Uma crônica inspirada, quase cantada, quase plagiada...


No início, sua vida parecia um palco iluminado. Muitas vezes se vestia de dourado e saia tropeçando nos astros, desastrada. Não tinha livros em casa, mas era uma estrela entre as estrelas. Caminhava e cantava, ouvindo a canção e não esperava acontecer. Era a ronda na cidade. Todo dia ela fazia tudo sempre igual e meia noite sempre jurava eterno amor a alguém. Amou, desamou, reamou, desatou e reatou. Por mais dolorido que o processo de amores pudesse parecer, sua vida era cheia de alegria. Caminhava contra ao vento sob um sol de dezembro, sem lenço e sem documento. Tantas vezes passeava, toda molhada e despenteada, na chuva, entre bancários, automóveis, ruas e avenidas. Algumas vezes de branco, outras vezes muito tímida. A chuva molhava o seu corpo que alguém iria abraçar. Não se furtava a entrar pela porta, com lentas luzes de neon, sentar à mesa do bar com flores murchas de crepom, ouvindo conversas entre fumaças de cigarros filtradas pela luz grená. Em sua mão fria, um cuba-libre tremia diante do triste “striptease” da agonia de cada um que deixava o cabaré. Agora, lá fora, a luz do dia já feria os olhos. Na noite ganhava presentes, promessas de sol, distribuía prendas e rendas, beijos, calores e louvores. Era dessas mulheres, que só dizem sim. Seu nome era Maria Rosa, seu sobrenome: Paixão. Quando moça, era um anjo de tanta beleza. Depois, calçando tamancos, com os cabelos brancos já estava em farrapos, pedindo nas portas um pedaço de pão. Vestia uma capa feita de retalhos (pedaços de suas fantasias). Para ela, cada um representava uma saudade. Eram retalhos coloridos - os vermelhos como as cerejas de seus drinques, os azuis eram referencias aos olhos de seus preferidos, os verdes iguais à pedra do anel que ganhou de um sargento do local. As cores escuras, dos retalhos de suas vestes, como o marinho, preto, chumbo e sépia eram homenagem à cor do chão molhado, que algumas vezes serviu de abrigo ao final de tantas madrugadas frias, regadas a uísque com guaraná, frisantes turvos e baratos. Já retalhos amarelos vibrantes, da cor da gema, do ouro reverenciavam o sol. O sol em suas infinitas manifestações de luzes. Fonte de energia, de luz e repouso. Sim, repouso, pois quando ele despontava, Maria era uma das poucas, assíduas espectadoras do maior espetáculo, diário, da terra depois das noites em claro, ou sob luz de velas. Ainda tinham os retalhos cor de rosa, azul celeste, branco, verde água, lilás... Esses, bem, a esses a própria Maria Rosa, não conseguia guardar lembranças significantes. A memória já andava meio nebulosa, sombria, fria. Fria como as águas da chuva, as águas de março. Elas pareciam, de verdade, fechar o verão, mas a promessa de vida no seu coração estava longe de sair dos versos da música e integrar a perspectiva de um futuro de prata brilhando com a luz da manhã. A luta, com paus e pedras, levava ao fim do caminho, dolorido feito um corte no pé com o caco de vidro sobre o estilhaço na estrada. Maria, sempre com um espinho na mão, no rosto o desgosto, um pouco sozinha, não iria ver o tijolo chegando, o projeto da casa, ou a festa da cumeeira. Aquele dia parecia ser o fim da picada. Com o corpo na cama e uma febre terçã tudo era noite, vinda com a chuva, chovendo pedras de atiradeira. Maria, como se tivesse entornado uma garrafa de cana, via uma ave no céu, uma ave no chão, o passarinho na mão em uma marcha estradeira prestes a levar um tombo na ribanceira. Aquele dia foi assim. O fim da canseira, o fim da ladeira, sem uma fonte ou um simples pedaço de pão. Era o fundo do poço, o fim do caminho, um mistério profundo sem queira, ou não queira. Para ela bastou um dia, não mais que um dia. Um meio dia e ela fez desatar a sua fantasia. Vocês, Marias de agora, amem somente uma vez, para que mais tarde essa capa não sirva em vocês.

Por Carlos Eduardo Finochio – Professor, historiador e artista plástico. Inspirada nas obras de Lupicínio Rodrigues, Tom Jobim, Caetano Veloso, João Bosco e Chico Buarque.